Reflexão

A FÉ NÃO CONSISTE NA IGNORÂNCIA, MAS NO CONHECIMENTO.
João Calvino

sexta-feira, 15 de junho de 2012

A vida na Amazônia pré-colonial




A vida na Amazônia pré-colonialGrandes sítios arqueológicos, diferentes tipos de cerâmica e o estudo das chamadas terras pretas indígenas são indícios de que a região amazônica desenvolveu uma diversidade cultural muito mais intensa do que se imaginavaSYLVIA MIGUEL

Muiraquitãs e cerâmicas marajoara e tapajônica: vestígios de sociedades complexas

N
a obra clássica de Mário de Andrade, o muiraquitã ganha inúmeros significados antropológicos dados por estudiosos da literatura brasileira. O talismã que permeia a história de Macunaíma tem origem no objeto sagrado que compõe uma das mais famosas lendas amazônicas, a da tribo das icamiabas. Mulheres guerreiras e sem maridos, chamadas de amazonas pelo colonizador europeu, diz a lenda, habitavam o Baixo Amazonas, nas adjacências dos rios Nhamundá e Trombetas. O amuleto, retirado sob a inspiração de Iaci (lua) do fundo de um lago denominado Espelho da Lua (Iaci-uaruá), era oferecido pelas guerreiras aos índios da aldeia vizinha, os guacaris, logo após acasalarem em noites de lua cheia. Uma versão da fábula diz que os rebentos do sexo masculino nascidos dessa união eram sacrificados. Outra, que eram entregues aos guacaris. As meninas permaneciam com a tribo feminina. O amuleto conferia status e poderes mágicos ao seu possuidor.

Bem pequenos e, por isso mesmo, alvo fácil de roubos e contrabandos, os muiraquitãs, quase sempre confeccionados em rochas esverdeadas, tinham em geral forma de sapos. Mais raramente, podiam ser talhados também em rochas brancas, em formatos de morcegos, peixes e homens. Associados à cerâmica conduri, os muiraquitãs não são exclusivos da região do Baixo Amazonas. Há informações de sua ocorrência na ilha de Marajó, além de Santarém, Alto Tapajós, norte de Manaus e até nas Guianas e ilhas do Caribe, segundo o professor Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.

“A distribuição de muiraquitãs por uma ampla área indica que as populações amazônicas do início do segundo milênio da era cristã não estavam isoladas, e sim integradas em redes de comércio ou em outros tipos de redes que permitiam o contato entre si”, afirma o professor em seu livro A Amazônia pré-colonial, que tem lançamento previsto para maio pela Editora Jorge Zahar. “Não existe um livro sobre o que há de mais novo na arqueologia da Amazônia, e eu sentia falta disso. É também uma forma de devolver à sociedade o que temos estudado na região”, diz Neves, que começou as escavações no Estado do Amazonas em 1990. Desde 1995 coordena na região dos rios Negro e Solimões um grupo de arqueólogos brasileiros e estrangeiros. 


Determinismo

A tradicional idéia de que a Amazônia era basicamente povoada por pequenos grupos nômades tem como base um argumento determinista, que propõe que os fatores ambientais – como escassez do solo e de proteínas e as mudanças climáticas – teriam limitado um processo de crescimento demográfico e de desenvolvimento social, segundo Neves. Por outro lado, afirma, os primeiros europeus relatavam que o rio Amazonas abrigava sociedades numerosas, grandes aldeias governadas por chefes supremos, com organização social e política aparentemente mais complexa do que a que vemos nas populações indígenas contemporâneas. “Nosso grupo de pesquisa tenta responder a essa questão. Queríamos fazer uma crítica ao determinismo ambiental e mostrar a capacidade de adaptação dessas populações”, diz Neves.

É fato que o contato com os europeus, a partir do século 16, provocou mudanças profundas nos povos nativos da Amazônia. Tanto que, atualmente, os indígenas habitam principalmente as áreas periféricas do rio Amazonas – ou seja, o Alto Rio Negro, o Alto Xingu, o planalto das Guianas e a bacia do rio Madeira. Já as proximidades dos rios Amazonas e Solimões e a ilha de Marajó estão repletas de sítios arqueológicos.

Tudo indica que essa mudança territorial ocorreu provavelmente pelo extermínio daquelas populações originais, causado pela transmissão de doenças, guerras e escravidão imposta pelo colonizador branco. O ciclo da borracha, no final do século 19, e a ocupação amazônica por famílias empobrecidas de migrantes nordestinos acentuaram o esvaziamento da área originalmente habitada por indígenas. “Talvez por isso, a imagem que se consolidou entre os cientistas e o público em geral foi a de que a Amazônia foi sempre esparsamente povoada. Atualmente a arqueologia contribui para modificar essa imagem, trazendo evidências da rica história pré-colonial da região”, afirma Neves em seu livro. 

Lendas

Se até certo ponto as lendas podem ser consideradas resquícios da história e das crenças de um povo, como é o caso do muiraquitã, as tradições orais dos povos amazônicos têm sido um caminho seguro para a descoberta de novos sítios arqueológicos. Os arqueólogos acreditam, por exemplo, existir uma clara relação entre os índios palicures, que habitam hoje o norte do Amapá e a Guiana Francesa, e os grupos indígenas criadores das cerâmicas aristé, que remontam ao século 4 ou 5. Essa proximidade ancestral permitiu que os palicures utilizassem sua tradição oral na identificação e pesquisa de sítios na região.

Uma experiência nesse sentido foi realizada no sítio Kwap, nas margens do rio Urucauá. “Nos trabalhos de campo, as informações dos índios foram utilizadas para identificar áreas para a abertura de escavações, normalmente inacessíveis ou pouco visíveis, já que o sítio está atualmente coberto pela mata. Sem essa colaboração, as informações obtidas no campo seriam certamente incompletas”, destaca o livro.

A participação ativa e criativa dos índios tarianas ajudou a identificar sítios arqueológicos na bacia do Alto Rio Negro. De acordo com as histórias contadas de geração em geração, os tarianas teriam se estabelecido na área por volta do século 15 e sofrido muitos conflitos armados. Já os cuicurus, no Alto Xingu, trabalharam com os arqueólogos no mapeamento de grandes aldeias circulares, cercadas por valas artificiais e conectadas por estradas.

Ao mesmo tempo em que participam dos trabalhos em campo da arqueologia amazônica, diversos grupos indígenas têm se organizado em torno de representações comunitárias e exercido cada vez mais pressão e preocupação quanto aos usos e proteção do patrimônio arqueológico. Questões como a proteção contra salteadores e a guarda definitiva de artefatos têm provocado um debate tal que evidencia “uma nova época no relacionamento entre índios e arqueólogos”, relata Neves.

Nenhum comentário:

Postar um comentário