Reflexão

A FÉ NÃO CONSISTE NA IGNORÂNCIA, MAS NO CONHECIMENTO.
João Calvino

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Anexação do Acre

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http://historia.abril.com.br/cotidiano/republica-acre-433768.shtml

República do Acre

por Fernando Granato
Até o final do século 19, a região era um canto esquecido da Amazônia que não interessava a ninguém. Mas, com o surto da borracha, se transformou num paraíso que, em menos de dez anos, foi palco de uma série de conflitos que quase levaram Brasil e Bolívia à guerra
Segunda metade do século 19. O Brasil tornara-se um Império independente de Portugal. O país crescia com a agricultura para exportação, com os imigrantes que vinham para substituir os escravos e caminhava, a passos trôpegos, é verdade, em direção à República. Mas esse era o retrato do Brasil atlântico, o Brasil com vista para o mar. A 5 mil quilômetros dali, um outro país existia, um país que, de tão esquecido, estava para ser abandonado. Em 1867, dom Pedro II assinou o Tratado de Ayacucho e cedeu o território do atual estado do Acre à Bolívia. Um naco de floresta de 150 mil km2 habitados por tribos indígenas e sertanejos que viviam mal-e-mal de explorar castanha, madeira e látex.
Na virada do século, no entanto, a coisa mudou. A nascente indústria automobilística americana elevou a demanda por borracha a índices estratosféricos, fazendo da exploração de látex um negócio para lá de atrativo. Em 1899, o governo boliviano lembrou-se de seu pedaço de floresta e resolveu abrir um posto alfandegário na vila de Puerto Alonso (a maior da região, onde hoje fica a capital do estado, Rio Branco) – e passou a cobrar taxas de extração e transporte dos seringueiros. E nada como impostos para deixar brasileiro descontente. As medidas irritaram os seringueiros e provocaram atritos entre as autoridades e os moradores da floresta.
Nesse clima, o jornalista espanhol Luiz Galvez Rodrigues de Arias, redator do jornal Província do Pará e também funcionário do consulado boliviano em Belém, ficou sabendo que o governo da Bolívia tinha na gaveta um projeto para arrendar o controle da região para uma empresa americana. De posse dessa informação, Galvez passou a insuflar os proprietários de seringais a se rebelarem. O grau de insatisfação era tamanho que o movimento conseguiu contagiar praticamente toda a população local. Apoiados pelo governador do Amazonas, Ramalho Júnior – que forneceu armas, munições e um barco especialmente equipado com um canhão, além de uma guarnição de 20 homens –, os seringueiros capturaram os poucos soldados bolivianos em Puerto Alonso e, em 14 de julho de 1899, proclamaram a República do Acre.
A nova nação formada por apenas uma cidade (Puerto Alonso, que mudou de nome para Porto Acre) tinha Luiz Galvez como presidente. Ele criou uma bandeira e até cunhou moeda própria. Galvez escolheu ministros e fez do seu bando um exército, nomeando coronéis e generais. Cuidou de rascunhar uma constituição e iniciou negociações diplomáticas para o reconhecimento do Acre como uma república independente. “Pelo menos um país, a Argentina, interessada em ter um aliado na região, reconheceu formalmente a nova república”, diz o professor José Dourado de Souza, chefe do departamento de história da Universidade Federal do Acre.
Para o escritor Márcio de Souza, autor de Galvez, o Imperador do Acre, o aventureiro espanhol era uma figura quixotesca, que conduziu uma revolução romântica apoiado por artistas e intelectuais que queriam libertar o Acre. “É incrível que aquilo tenha acontecido e obtido êxito diante das tropas bolivianas”, afirma o escritor. Mas o sucesso foi curto: seis meses. Foi o tempo que as tropas do Exército brasileiro demoraram para chegar ao Acre, capturar o Quixote da amazônia e devolver o controle da cidade à Bolívia.
No entanto, o estrago estava feito. A ousadia de Galvez mostrou às autoridades de La Paz que eles precisariam agir se quisessem manter a soberania sobre a região. E eles queriam. E agiram depressa. Além de enviar reforços militares ao local, o governo boliviano tornou público o projeto de passar o controle do Acre para a Anglo-Bolivian Syndicate, de Nova York, uma empresa multinacional que tinha entre seus sócios o rei dos belgas e um parente do presidente dos Estados Unidos. A entidade recebeu de bandeja o monopólio sobre a produção e a exportação da borracha, além do direito de cobrar impostos e até de fazer as vezes de polícia.
A presença estrangeira na região acendeu fervores nacionalistas. Os brasileiros eram vistos com desconfiança e os atritos com os bolivianos passaram a ser cada vez mais freqüentes. Menos de um ano depois, um novo movimento tentaria repetir o intento de Galvez: foi a chamada “expedição dos poetas”, uma aventura ainda mais romântica, que reuniu intelectuais e estudantes amazonenses, liderados por Orlando Corrêa Lopes. Partindo de Manaus a bordo do vapor Solimões, eles desejavam ajudar os seringueiros a “emancipar o Acre”. Sem planos e estratégias definidos, os conspiradores fracassaram e acabaram presos pelo governo brasileiro, que insistia em fazer valer o Tratado de Ayacucho.
Revolução
Mais experiente, o ex-militar José Plácido de Castro havia integrado as forças federais brasileiras que lutaram na revolução de 1893, no Rio Grande do Sul, e chegara à Amazônia por volta do 1900 (persiste uma dúvida sobre essa data) com planos de desbravar a floresta. Logo se tornou um figadal opositor do plano boliviano de arrendar o Acre aos americanos e passou a organizar os seringueiros para uma nova reação. Anos mais tarde, numas notas que escreveu a pedido do escritor Euclides da Cunha – que queria conhecer melhor a história desse conflito –, Castro relatou a gestação do movimento: “O contrato com a Bolivian Syndicate era uma completa espoliação contra os acreanos. Passei então a falar com vários proprietários de seringais da possibilidade de resistência”.
As anotações de Plácido de Castro contam a tomada de Xapuri, em 6 de agosto de 1902. O lugarejo escondido na selva estava praticamente deserto, pois naquele dia se comemorava a Independência da Bolívia e a população local havia passado a noite anterior em festa. As poucas autoridades de plantão estavam alojadas em três casas no vilarejo. Os 33 rebeldes brasileiros, liderados por Plácido de Castro, invadiram de surpresa a vila por três flancos diferentes. O líder arrombou a casa que servia de delegacia, cadeia e prefeitura e de lá retirou armas e munição. O sujeito que administrava o local, mal acordado, achou que o movimento tinha alguma relação com os festejos na cidade. Plácido de Castro, ao dar voz de prisão aos bolivianos, disse: “Isso não é festa. É a revolução”.
As tropas bolivianas demoraram mais de um mês para reagir. Com apenas 70 homens e poucas armas, os revolucionários enfrentaram um batalhão com mais de 200 soldados bolivianos, em 18 de setembro. E os homens de Plácido de Castro levaram a pior. “Vinte e dois mortos deixamos no campo, dez feridos recolhemos e uns seis fugiram. Essa foi nossa estréia”, escreveu.
A derrota apavorou os seringueiros travestidos de soldados e provocou muitas deserções. Mas Castro não desanimou: mandou circular entre os seringais um comunicado minimizando os efeitos do desastroso combate e prosseguiu a marcha. Em 5 de outubro, reiniciou os ataques às forças inimigas, próximo à vila de Panorama. “Empenhou-se o combate, sendo em pouco tempo tomadas duas trincheiras inimigas”, contou nas anotações. A batalha durou 11 dias e os rebeldes abriram valas sob a terra e conseguiram finalmente chegar do lado dos adversários. Obrigaram o comandante das forças bolivianas, coronel Rojas, a se entregar junto com seus 150 soldados. “Os outros, em número de 30, haviam morrido.”
O movimento ganhou força e adesões e, em 18 de novembro, as tropas de Castro dizimaram mais uma coluna boliviana na vila de Iquiry. O combate durou cinco horas e terminou com um vasto incêndio nas casas dos inimigos. Às 9 horas da manhã do dia 15 de janeiro de 1903 os rebeldes chegaram a Porto Acre. Às 2 da tarde eles já ocupavam posições a 120 metros das trincheiras inimigas. “As nossas perdas nesse dia subiram a 50, entre mortos e feridos. A sede nos devorava”, escreveu Plácido de Castro. Apesar das dificuldades, o que se viu a seguir foi digno de cinema, com os revoltosos adentrando a área inimiga, por rio, a bordo do navio Independência, sob uma saraivada de balas.
Depois de dez dias de cerco, Porto Acre rendeu-se. “No dia 26, por ocasião de uma revista geral passada às nossas tropas, no planalto de Porto Acre, um líder seringueiro, em nome de todos os oficiais combatentes da revolução e dos civis presentes, aclamou-me governador do Acre e comandante-em-chefe das forças”, relatou Castro.
A notícia revoltou a população boliviana, que exigiu uma resposta de seu governo. O presidente Manuel Pando assumiu pessoalmente o comando do Exército e marchou para o Acre. A um passo da guerra, o Brasil agiu com diplomacia e mandou o ministro das Relações Exteriores, o barão de Rio Branco, falar com os vizinhos ofendidos.
A primeira medida tomada pelo barão foi brecar a revolução dos seringueiros, que ainda estava em curso. Foi enviada ao Acre uma expedição militar que obrigou Castro a abandonar o poder. Nas suas notas, o líder guerrilheiro falou com mágoa desse momento: “Publiquei uma ordem dissolvendo o Exército acreano, visto o general brasileiro ter invadido o Acre meridional”.
Contida a revolta, a diplomacia brasileira transferiu o conflito da selva para uma mesa de negociações. O local escolhido para selar a paz entre os dois países foi Petrópolis, no Rio de Janeiro. Ficou combinado que o Brasil ficaria com o Acre, rico em florestas e reservas de seringais, pelo qual pagaria à Bolívia 2 milhões de libras esterlinas. O Brasil comprometeu-se, ainda, a entregar áreas da fronteira do Mato Grosso e construir uma estrada de ferro que cortasse a selva e oferecesse à Bolívia uma saída para o oceano Atlântico. As negociações, iniciadas em julho de 1903, encerraram-se quatros meses depois, com a assinatura solene do Tratado de Petrópolis.

Trem fantasma

A ferrovia Madeira-Mamoré entrou para a história como sinônimo de fracasso
Uma estrada de ferro de 366 quilômetros no meio da floresta amazônica, passando sobre rios que triplicam de volume na época da chuva (o que pode durar quase metade do ano) e ligando coisa nenhuma a lugar algum parece uma péssima idéia. Se seria ruim hoje, imagine há 100 anos. Parte do acordo que colocou fim às hostilidades entre Brasil e Bolívia pela posse do Acre, a construção da ferrovia Madeira-Mamoré tinha tudo para dar errado. E deu. Desde que perdeu sua faixa litorânea no Pacífico para o Chile, durante a Guerra do Guano, em 1883, a Bolívia ficou sem saída para o mar, fundamental para uma economia baseada na exportação. Por isso, os bolivianos acharam uma boa idéia trocar o Acre por uma ferrovia que fosse da fronteira com o Brasil ao rio Mamoré. Daí, de barco pelos rios Madeira e Amazonas, os produtos bolivianos chegariam ao Atlântico.
Em maio de 1905, o governo brasileiro abriu concorrência para a obra. Tomando por base o custo das ferrovias construídas em Minas, São Paulo e Rio, não conseguiu muitos pretendentes: apenas dois. Venceu um ilustre desconhecido, de nome Joaquim Catrambi, testa-de-ferro de um poderoso empresário americano, Percival Farquhar, que achou que poderia ganhar dinheiro explorando as riquezas naturais da região. Pelo contrato, madeira e outras coisas retiradas da floresta pertenceriam a quem achasse. As obras começaram em 1907.
Em plena estação das chuvas, 14 sujeitos abriram uma clareira na mata e construíram casas para trabalhadores, oficinas e escritórios que, mais tarde, viriam a se tornar a cidade de Porto Velho.
Os empreiteiros americanos descobriram logo que o ambiente insalubre e as doenças tropicais incapacitavam os trabalhadores num ritmo mais rápido do que eles podiam avançar com os trilhos.
Criaram então um processo de rodízio, no qual cerca de 500 novos empregados chegavam todos os meses para substituir os doentes. Cerca de 22 mil operários – vindos dos Estados Unidos, Europa, China, Índia, países do Caribe e Oriente Médio, além de estados brasileiros – chegaram e se foram. Segundo registros do Hospital da Candelária, criado especialmente para tratar os funcionários da ferrovia, 1 593 pessoas morreram depois de serem atendidas. Somados aos que nem chegaram ao hospital, estima-se que mais de 2 mil operários nunca voltaram para casa.
Seis anos e milhares de dólares depois – nunca se soube ao certo o custo total da construção – a obra ficou pronta.
No mesmo ano de 1913 a exportação de borracha da Ásia superou a da Amazônia e o preço do produto despencou. Com o tempo, a tão desejada saída para o mar passou a ser cada vez menos freqüentada e ficou praticamente abandonada por quase 20 anos, até que, em 1966, foi oficialmente dasativada. “É impossível, por exemplo, dizer quanto custou a ferrovia Madeira-Mamoré aos cofres públicos e quanto foi transportado nos seus anos de existência, porque o Exército incinerou os documentos oficiais sobre ela”, diz o historiador Márcio de Souza, que procurou os arquivos da empresa para escrever o livro Mad Maria. Parte de seus equipamentos foi vendida como sucata ou jogada no rio Madeira. O que sobrou é, até hoje, um cemitério a céu aberto de locomotivas, trilhos e ruínas.

Chico Mendes: um brasileiro

Com ele, o Brasil (e o mundo) acordou para os problemas da ocupação da Amazônia
A anexação ao Brasil não encerrou os conflitos pela posse da terra no Acre. Ocupada de maneira desordenada, muitas vezes às margens da lei, como boa parte da Amazônia, a região foi disputada por posseiros, índios e fazendeiros que brigaram (e se mataram) por um naco da floresta. Oitenta anos depois da anexação ao Brasil, um novo surto de ocupação do Acre revelou esse conflito para o país e o mundo. Criadores de gado chegaram à região na década de 70, derrubando grandes áreas e transformando floresta em pastagem. Enfrentaram a oposição dos seringueiros e de um líder: Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes. Sujeito de fala mansa e gestos delicados, conseguiu acabar com uma rivalidade de décadas, reunindo índios e seringueiros, numa comunidade que chamou de “povos da floresta”. Eles resistiam ao avanço das fazendas pondo-se à frente das máquinas que cortavam a floresta. Em 1987, Chico foi condecorado pela ONU e convidado a participar da reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
Lá, convenceu banqueiros internacionais a não investirem numa grande rodovia no Acre, alegando que sem precauções ambientais, ela era um atentado à floresta. O mundo já o conhecia. O Brasil não. A maioria das pessoas só soube dele depois de 22 de dezembro de 1988. Às 18h45 daquele dia Chico Mendes foi assassinado na porta da cozinha de sua casa em Xapuri. O autor dos disparos foi o fazendeiro Darci Alves Pereira, a mando de seu pai, Darli Alves da Silva. Em 1991, pai e filho foram condenados a 19 anos de prisão. Os dois fugiram da cadeia, em Rio Branco, em dezembro de 1993. Recapturados em 1996, ficaram menos de três anos presos. Hoje, Darli vive em sua casa, em prisão domiciliar. E Darci cumpre pena em regime semi-aberto.

Saiba mais

Livros
Galvez, o Imperador do Acre, Márcio de Souza, Record, 2001 - Conta a vida e a prodigiosa aventura de Luiz Galvez Rodrigues de Arias nas fabulosas capitais amazônicas e a burlesca conquista do território acreano
Mad Maria, Márcio de Souza, Record, 2002 - Aborda os episódios mais macabros dos anos da construção da ferrovia Madeira-Mamoré
Chico Mendes – Crime e Castigo, Zuenir Ventura, Companhia das Letras, 2003 - Descreve o crime que vitimou o líder seringueiro e narra suas conseqüências

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