Reflexão

A FÉ NÃO CONSISTE NA IGNORÂNCIA, MAS NO CONHECIMENTO.
João Calvino

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A carta régia de 12 de maio de 1798

In:

O Arquivo Nacional e a História Luso-BrasileiraÍndios
Extinção do Diretório dos Índios
Carta da rainha d. Maria I ao governador e capitão general do Estado do Pará, d. Francisco de Souza Coutinho, estabelecendo uma série de ordens para que os índios daquela região - tanto aqueles que já habitavam as povoações quanto aqueles que viviam “embrenhados” - fossem integrados à sociedade. Para tanto,  o mesmo documento extinguia o Diretório dos Índios. Segundo este documento, o objetivo dessa medida era que os indígenas ficassem em igualdade com os outros vassalos, tornando-se úteis e governados pelo Estado e pela Igreja.
Conjunto documental: Coleção de memórias e outros documentos sobre vários objetos.Notação: Códice 807, vol. 11
Datas – limite: 1768-1822
Título do fundo: Diversos códices - SDH
Código do fundo: NP
Argumento de pesquisa: índios, aldeamentos
Data do documento: 12 de maio de 1798
Local: Palácio de Queluz
Folha (s): 23 a 34

“D. Francisco de Souza Coutinho[1], do meu Conselho, Governador e Capitão General do Estado do Pará[2]. Eu a Rainha[3] vos envio muito saudar. Sendo a civilização dos índios, habitantes dos vastos distritos dessa Capitania, um objeto mui digno da Minha Maternal atenção, pelo bem real que eles, não menos do que o Estado, acharam em entrarem na sociedade, e fazerem parte dela, para participarem igualmente com os outros meus vassalos[4] dos efeitos do meu contente e [ilegível] interrompido desvelo em os amparar à sombra das saudáveis determinações (...) e assim não só de convidar aqueles índios que ainda estão embrenhados no interior da capitania a vir viver entre os outros homens, mas de conservar [ilegível] e permanentes aqueles que já hoje fazem parte da sociedade, servindo o Estado e conhecendo uma religião, em que vivem felizes, bem de outro modo que os primeiros, desgraçadamente envolvidos em uma ignorância cega e profunda até dos primeiros princípios da Religião Santa, abraçaram os últimos, por efeito da pias e benéficas disposições dos Senhores Reis, meus predecessores e minhas: e querendo igualmente que a condição destes índios, assim dos que já hoje tem trato e comunicação com os outros meus vassalos, como dos que deles fogem, seja em tudo a de homens em sociedade: Hei por bem abolir e extinguir de todo o Diretório dos Índios[5]estabelecido provisionalmente para o governo econômico das minhas Povoações, para que os mesmos índios fiquem, sem diferença dos outros meus vassalos, sendo dirigidos e governados pelas mesmas leis, que regem todos aqueles dos diferentes Estados, que impõem (sic) a Monarquia, restituindo os índios aos direitos, que lhes pertencem igualmente como aos meus outros vassalos livres. E confiando eu que vós procedereis para o importante fim da civilização dos índios com um acerto tanto do Meu agrado, quanto o foi o da informação que cobre este objeto me destes, encarrego-vos de cuidar des[de] logo nos meios mais eficazes de ordenar e formar os índios que já vivem em Aldeias, promiscuamente com os outros, em Corpos de Milícias, conforme a população dos Distritos, e segundo o Plano por que estão formados e ordenados os outros: E para Oficiais Comandantes de tais Corpos nomeareis os principais e oficiais das povoações indistintamente com os moradores brancos, fazendo executar as disposições e ordens concernentes ao governo e direção deles pelos referidos oficiais comandantes e pelos seus juizes, alternativamente brancos e índios, segundo a ordem a que pertencerem. Tratarei também de formar um Corpo efetivo de índios, bem como os Pedestres de Mato Grosso[6] e de Goiases[7], preferindo porém os pretos forros e mestiços, enquanto os houver, como mais robustos e capazes de suportar o trabalho, deixando ao [ilegível] discernimento o modo porque, haveis de organizar o referido Corpo efetivo, sem prejuízo da condução das madeiras e de outros serviços em que utilmente se empregam os índios, fixando-lhes um número determinado de anos de serviço (...) só trabalharão uma parte do ano, ficando-lhes a outra, para cuidarem nos negócios das suas famílias; o que insensivelmente os irá costumando a ocupações sérias, e por conseqüência a achar necessário para a sua felicidade um governo, que provê todas as mais precisões. [...] A paga deste Corpo será a mesma que a atual dos índios, acrescentando com uma porção de sal à ração diária e dando-lhes outra de aguardente[8], quando andarem em viagens, ou estiverem nos matos. Vencerá este Corpo dois uniformes cada ano (...) Conformando-me igualmente com o vosso parecer acerca dos índios que se ocupam nas pescarias, ordeno-vos, que façais logo alistar em número suficiente todos aqueles que houverem de ser pescadores, dispensando-os de entrarem assim no Corpo do Meu Real Serviço como nos de Milícias, e que lhes destineis as vilas em que devem habitar ficando porém sujeitos a outros trabalhos da pescaria, e impondo-lhes uma pena proporcionada, àqueles alistados que faltarem ao serviço ou abandonarem as embarcações (...) E porque não é da Minha Real Intenção que o Contrato dos Dízimos suba de preço à custa dos índios, mas sim que o dizimeiro e os outros contratadores daqueles contratos tenham gente para remar as canoas que a eles pertencem, e a quem paguem pelo preço em que convierem. (...) O outro meio que me propendes, como tendente também para o mesmo fim da Civilização dos índios,, é a continuação do comércio e navegação para Mato Grosso, feito por escravos[9], e não pelos índios (...) E com a fiel e bem entendida execução que confio dareis a estas Minhas Saudáveis Providências, espero ver realizados os desejos de aumentar o número dos fiéis, atraindo ao Grêmio da Igreja e à obediência das Minhas Leis uma considerável porção dos habitantes desse vasto país, que involuntário mas cegamente e infelizmente não conhecem outra lei que não seja da sua vontade sem regra, nem discernimento. E quanto antes poserdes em prática estas Minhas Disposições, tanto maior serviço fareis a Seus e a mim, a quem será mui agradável que vós sejais o Instrumento da total civilização desses índios, ao ponto de se confundirem as duas castas de índios e brancos em um só de vassalos úteis ao Estado, e filhos da Igreja.
Restituindo assim aos seus direitos os índios, convém atalhar a natural ociosidade, que os convida o clima, quer no Meu Real Serviço, que no dos particulares. (...) Iguais os índios em direitos e obrigações com os meus outros vassalos, ainda falta facilitar-lhes alianças com os brancos, como um meio muito eficaz para a sua perfeita civilização: Portanto ordeno-vos, que cuideis muito em promover os casamentos entre índios e brancos[10] (...) conceda a todos os brancos que casarem com índios a prerrogativa de ficarem isentos de todos os serviços públicos os seus parentes mais próximos, por um número de anos (...) Regulado assim a condição [dos] índios, que já vivem aldeados, é minha real Intenção, pelo que toca ao que andam embrenhados nos matos e repugnam procurar a sociedade dos outros seus semelhantes pelos justos motivos que me patenteais, alterar o sistema até agora seguido, e substituir lhe outro, que tenha por princípio não o conquistá-lo e sujeitá-los, mas prepará-los para admitirem comunicação e trato com os outros homens: e para este fim vos ordeno, que não façais nem consintais se faça, debaixo das mais severas penas, que ficam reservadas ao Meu Real arbítrio, guerra ofensiva ou hostilidades quaisquer a nação[11] alguma degentios[12], que habitam os vastos espaços dessa capitania; e recomendo-vos do mesmo modo que nem deis nem consintais se dê auxílio direto ou indireto nas guerras que umas nações às outras poderem fazer; proibindo, debaixo de rigorosas penas, a compra ou recebimento de nenhum escravos apreendidos nas guerras que entre si tiverem (...) E só vos será lícito adotar um sistema diferente deste puramente defensivo, no caso em que algumas das mesmas nações intentem hostilidades e correrias contra as cidades, vilas e outras povoações do norte (...) Todos e quaisquer comboios que freqüentarem o interior do Brasil, e dessa capitania em particular, seja navegando os rios, seja caminhando pelas estradas, serão obrigados a levar entre os gêneros de que compuserem as suas carregações, aqueles de que os gentios fazem naturalmente maior estimação, afim que encontrando-os, os brindem com tais presentes (...) Todo aquele indivíduo livre que quiser estabelecer-se nas terras e povoações dos gentios lhe serás concedida licença para isso; mas não poderá fazê-lo sem dar parte ao governo (...) Encarregando-vos ultimamente de cumprirdes e fazerdes se cumprir quanto nesta se contém, não obstante quaisquer outras ordens ou disposições em contrário sejam. Escrita no Palácio de Queluz[13] em 12 de maio de 1798.

[1] Governador da província do Grão- Pará, entre 1790 e 1803, era irmão de d. Rodrigo de Souza Coutinho.[2] Província do Brasil situada entre as atuais regiões do Amazonas e de Roraima. Sua fundação reporta-se à instalação do Forte do Presépio (1616), fruto da preocupação da coroa portuguesa em evitar a penetração  de corsários, sobretudo franceses, em seus domínios pelo rio Amazonas. Esse forte deu origem a cidade de Belém, capital do atual Estado do Pará. Foi através dessa província que, na década de 1720, foi introduzido o café no Brasil. Anos mais tarde, em 1796, ocorreu a criação do primeiro Jardim Botânico do Brasil, instalado em Belém-do-Pará. Criado para servir de modelo “a todos os outros que  viessem a se constituir na América Portuguesa”, o Jardim Botânico destinava-se ao cultivo e adaptação de árvores exóticas e plantas medicinais indígenas, atendendo a vertente utilitarista da Ilustração luso-brasileira que visava à exploração das potencialidades da colônia.[3] Trata-se de d. Maria I, denominada “a louca” (1734-1816). Nascida em Lisboa e falecida no Rio de Janeiro, (residia em tal cidade desde a mudança da família real para o Brasil em 1808, por ocasião da invasão francesa em Portugal). Foi responsável pela destituição do Marquês de Pombal do cargo de primeiro-ministro, e por uma série de reformas consideradas de “anti-liberais”, marcando a chamada “época da “viradeira”.[4] Neste período indica o mesmo que súdito da coroa. A palavra na Idade Média referia-se a uma camada privilegiada que recebia terras do Rei e uma série de benefícios.[5] Conjunto de diretrizes instituído pelo Marquês de Pombal no final da década de 1750, destinado as povoações indígenas do Pará e Maranhão. Este documento buscava a regulamentação como um todo da vida dos índios, uma vez que a Coroa portuguesa considerava-os incapazes devido a sua “barbárie”. Tratava então, de questões como por exemplo, a propagação da fé católica, a extinção do gentilismo, a chamada “civilidade” dos índios através da aculturação portuguesa, o aumento da agricultura e a introdução do Comércio.
[6] Região descoberta a partir das expedições bandeirantes em busca do ouro no século XVII, foi palco durante todo o período colonial da convivência, nem sempre pacífica, das populações brancas e indígenas. A região também abrigou índios e negros fugidos.
[7] Apesar de ser uma região conhecida desde o século XVI, seu processo de colonização apenas iniciou-se no final do século XVII, a partir das descobertas de minas de ouro por bandeirantes paulistas, com destaque para Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, considerado o descobridor de Goiás. Tem como legado cultural deste período o intenso contato entre índios nativos e negros, trazidos para a exploração das minas. Entre as cidades que mais se desenvolveram neste período do Ciclo do ouro destacam-se: Corumbá, Pirenópolis e Vila Boa.
[8] Destilada do melaço, é um subproduto do refino do açúcar. Sua utilização foi extensa e variada no mundo português: moeda de troca no tráfico negreiro; produto “calmante dos ânimos” dos escravos nas travessias do Atlântico e “refúgio da dura vida” nas senzalas; dentifrício (limpeza bucal) dos portugueses e produto indispensável na ração das bandeiras. Desta forma, remontando a paisagem colonial como uma pintura descrita, certamente seria encontrado a figura do alambique. Até hoje, no Brasil, a “cachaça” - nome popular do aguardente - tem seu lugar de destaque.  Na África Central Ocidental, a aguardente tornou-se conhecida como “geribita”.
[9] Logo nos primeiros anos da colonização no Brasil, utilizou-se mão do trabalho escravo indígena  para garantir a mão-de-obra necessária à produção açucareira, principal atividade da economia colonial até o século XVIII. Empregados nas lavouras, nos engenhos, nos moinhos, na criação de gado e nos serviços domésticos, os índios foram a primeira opção dos senhores de Engenho para a escravização, devido ao grande contigente populacional então existente e à falta de recursos suficientes que viabilizassem a importação de escravos africanos, já conhecidos pelos portugueses. Apesar da existência de uma legislação que proibia a escravidão indígena desde o final do século XVI,  a Coroa portuguesa não conseguiu extinguí-la.  As reações dos gentios à escravidão foram as mais diversas, além das lutas armadas, a fuga, o alcoolismo e o suicídio foram os meios encontrados para reagir à violência  do escravismo colonial. A substituição do escravo indígena pelo escravo africano deu-se a partir do século XVII, resultando de vários fatores:  a grande resistência dos índios à escravidão;  a crescente escassez de mão-de-obra indígena, decorrente da mortandade gerada pelas doenças e pelas guerras; a posição contrária da Igreja Católica e o tráfico negreiro intercontinental.  Na verdade, foi o lucro originário do comércio negreiro que,  tornando-se uma das principais fontes de recursos para a metrópole, fez do escravo africano mais atrativo do que o indígena. 
[10] De acordo com a historiografia tradicional, a coroa portuguesa enviou no final do século XVI navios com mulheres brancas para que os primeiros colonizadores pudessem estabelecer famílias no Brasil. Isto seria também uma maneira de impedir a miscigenação das raças e a união sem a benção da Igreja Católica. No entanto, estudos atuais sobre a colonização brasileira, mostram que estes casamentos inter-raciais foram em algumas situações até estimulados, uma vez que o casamento entre um europeu e uma índia de determinada tribo poderia assegurar vantajosas alianças políticas nas batalhas que envolvessem um povo considerado inimigo pela tribo da esposa. Além disso, havia a questão da aculturação dos povos indígenas, a partir do incentivo da Igreja através da catequese, que asseguraria ao marido a legitimidade da união, uma vez que a esposa passaria a professar a fé católica. 
[11] termo nação está sendo aqui empregado para designar as tribos indígenas, que se agrupavam de acordo com suas crenças e línguas.
[12] Termo empregado pelos colonizadores portugueses ao se referirem aos índios e significava o mesmo que bárbaro, pagão.
[13] Região de Lisboa que abrigou o antigo castelo real, construído no século XVIII.

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